quinta-feira, 26 de março de 2015

Crítica – As mulheres de Moliére (Cia. Visse e Versa, AC)


 Um  Moliére brasileiri(beir)inho. Um Festival e suas circunstâncias

“Ninguém dá valor à virtude nua”

Kil Abreu
           
            A inspiração e a base em Moliére, neste recorte de passagens dos seus textos; e a ideia de fazer com que a montagem seja também uma brincadeira que projeta certa imagem do  francês em contraste com aspectos da cultura brasileira são os dois eixos principais de “As mulheres de Moliére”. Provavelmente até mais explícitos que a intenção anunciada no título, a de caracterizar o feminino na cena do autor. Ao fim e ao cabo prevalecem mais sustentados estes dois eixos e as questões  todas que vão dali variar: o gosto pela observação do  comportamento, sobretudo quanto aos bastidores das relações entre vida pública e vida privada, quando quase sempre os fatos de uma desmascaram os da outra (daí o efeito cômico). E os quiproquós envolvendo toda espécie de fantasia em torno dos papéis sociais: os desejos por vezes alucinados de ascensão  ou a ridicularização de uma burguesia nascente.

            O melhor da montagem apresentada pela Visse Versa no calçadão do Mercado Velho é a vontade,  desde logo anunciada em cena  aberta,  de traduzir o francês em termos cênicos próprios, que aqui ganham a forma de  trocadilhos com a linguagem e, parcialmente,  da livre refeitura   do texto de origem. É um jogo que se constrói na dinâmica mesmo das cenas e não dispensa aqui e ali as oportunidades de  triangulação com a plateia, o que garante uma parte do vigor que o espetáculo mostra.  São procedimentos, então,   que abrem portas  para uma leitura daquelas peripécias  em  língua local. Leitura que se inicia nas ações propostas  por Moliére  mas que querem avançar além.
            E, de fato, lá estão  os traços de uma cena, pode-se dizer, brasileira e amazônica dos textos: nas adaptações linguísticas, nas ações e gestualidades que ganham um desenho reconhecível, na entrada desavisada do sotaque regional e, sobretudo, no cancioneiro que pontua a montagem – que vai da embolada à ciranda, passando pelo samba de roda e a capoeira.
            Curiosamente o contraponto a essas linhas de força do espetáculo (todas elas favoráveis à teatralidade) é certa disposição, às vezes acidental mas às vezes central, em abandonar essa chave ‘crítica’ de leitura e aderir a supostas ‘formas de fazer’ a dramaturgia funcionar. O trabalho tende a derrapar quando substitui o jogo livre – nas bases acima descritas – pela eleição de uma  forma supostamente ‘adequada’ de levantar a comédia. Para ficar em um exemplo: o mesmo bom ator (Romualdo Freitas) que já demonstrara  antes grande desenvoltura para conduzir a plateia ‘na palma da mão’ , a partir de certa passagem começa a desenhar climas e estados que de repente parecem descolar-se   daquele  jogo  matreiro, da vontade de comunicação direta, que estavam sendo propostos.  É quando o espetáculo se ensimesma,  parece querer jogar apenas consigo mesmo – o que gera algum distanciamento da plateia,  na sequência retomado quando o caminho antigo é redescoberto. Não parece ser, fundamentalmente, um problema no desenho da cena pensado na direção de Lenine Alencar,   mas na suspensão do espírito  liberto, autônomo, que a conduzia até ali, moldando as suas formas. Observar as consequências dessa descontinuidade no fluxo da montagem  também deve ser uma tarefa do encenador, que está na melhor posição para avaliar o conjunto.
            De todo modo o espetáculo, apesar da ‘barriga’,  no quadro geral evolui bem e cumpre  a vocação  que  anuncia: a de tatear os caminhos não apenas das formas já dadas na tradição do cômico, mas – e viva – as que ainda estão por serem inventadas, como estas de uma possível  “Comédia Dell Acre”  que o grupo intuiu bem e que pode ser, quem sabe, o princípio de uma pesquisa artística com boas chances de se verticalizar e criar para o grupo o perfil, a identidade mais evidente, o “falar em seu próprio nome e com seus próprios meios”. Ou seja,  a autonomia estética que neste trabalho  já se pode intuir.
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            Como se trata da abertura do Festac seguem abaixo algumas notas e percepções (de um ponto de vista estrangeiro, o deste crítico)  a respeito das circunstâncias em que o Festival acontece (isto vai fazer deste texto algo um pouco mais extenso  que os que virão adiante).   
            Após a apresentação do espetáculo aconteceu algo inesperado e que, no entanto, foi muito significativo na demonstração do apreço que se  tem  pelo Festival. Na hora do ‘debate’ a energia elétrica caiu e mesmo assim nem por um momento falou-se em cancelar o encontro. De repente acenderam-se celulares e os que estavam no entorno iluminaram o breve, mas precioso momento que se seguiu. Pelas circunstâncias, que são do conhecimento e da vivência de todos,  foi tão bonito quanto o vigor que acabara de ser demonstrado em cena.
Bravos à federação de  teatro, que conseguiu agregar aos esforços próprios dos trabalhadores/artistas   o dinheiro capaz de colocar o Festival de pé. Torçamos para que no futuro próximo toda a lida e a energia sejam empregadas  prioritariamente nos projetos de criação; que as desigualdades que são visíveis também nas políticas públicas sejam aplainadas em um   projeto  amplo de política para as artes no Brasil. Bravos novamente a esses artistas, por terem insistido no Festival mesmo diante de um desarranjo social do tamanho desse provocado pela cheia. A natureza  é uma força viva e por isso mesmo  é preciso fazer a contracena a partir daquilo que no teatro também é vida plena. E, por fim, bravos por terem aberto o Festival com um espetáculo na rua: a melhor resposta possível para o momento -  remeter à origem popular dessa arte, por onde ela começou e para onde, em momentos como este, ela tende a voltar para recuperar seu poder, para olhar o mundo dentro e em torno.
No tempo das vitrines e da vida-mercadoria  embalada em papel de presente, a sentença de Moliére é mais que oportuna: “ninguém dá valor à virtude nua”. E, no entanto, foi nas ruas,  essa  virtude nua do teatro, que o Festival escolheu acertadamente começar. E começou de uma maneira aventurosa, vibrante e necessária.  




VII FESTAC / Mostra Semana do Teatro 2015 é uma realização da Federação de Teatro do Acre - FETAC e tem patrocínio da CAIXA  / GOVERNO FEDERAL, pelo programa Caixa Cultural de Apoio a Festivais de Teatro e Dança, com parcerias do Governo do Estado do Acre através da Fundação Elias Mansour – FEM, Fundo Estadual de Cultura - FUNCULTURA, PRECULT e Via Verde Shopping, além do apoio da Pizzaria Guia do Sabor, Marcenaria Sulatina, Jornal Opinião e Prefeitura de Rio Branco pela Fundação Garibaldi Brasil – FGB.

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