Um Moliére brasileiri(beir)inho. Um Festival e
suas circunstâncias
“Ninguém dá valor à virtude nua”
Kil Abreu
A inspiração
e a base em Moliére, neste recorte de passagens dos seus textos; e a ideia de
fazer com que a montagem seja também uma brincadeira que projeta certa imagem
do francês em contraste com aspectos da
cultura brasileira são os dois eixos principais de “As mulheres de Moliére”.
Provavelmente até mais explícitos que a intenção anunciada no título, a de
caracterizar o feminino na cena do autor. Ao fim e ao cabo prevalecem mais sustentados
estes dois eixos e as questões todas que
vão dali variar: o gosto pela observação do
comportamento, sobretudo quanto aos bastidores das relações entre vida
pública e vida privada, quando quase sempre os fatos de uma desmascaram os da
outra (daí o efeito cômico). E os quiproquós envolvendo toda espécie de
fantasia em torno dos papéis sociais: os desejos por vezes alucinados de ascensão ou a ridicularização de uma burguesia
nascente.
O melhor da
montagem apresentada pela Visse Versa no calçadão do Mercado Velho é a
vontade, desde logo anunciada em cena aberta,
de traduzir o francês em termos cênicos próprios, que aqui ganham a forma
de trocadilhos com a linguagem e,
parcialmente, da livre refeitura do texto de origem. É um jogo que se constrói
na dinâmica mesmo das cenas e não dispensa aqui e ali as oportunidades de triangulação com a plateia, o que garante uma
parte do vigor que o espetáculo mostra. São
procedimentos, então, que abrem
portas para uma leitura daquelas peripécias em língua local. Leitura que se inicia nas ações
propostas por Moliére mas que querem avançar além.
E, de fato,
lá estão os traços de uma cena, pode-se
dizer, brasileira e amazônica dos textos: nas adaptações linguísticas, nas
ações e gestualidades que ganham um desenho reconhecível, na entrada desavisada
do sotaque regional e, sobretudo, no cancioneiro que pontua a montagem – que vai
da embolada à ciranda, passando pelo samba de roda e a capoeira.
Curiosamente
o contraponto a essas linhas de força do espetáculo (todas elas favoráveis à
teatralidade) é certa disposição, às vezes acidental mas às vezes central, em
abandonar essa chave ‘crítica’ de leitura e aderir a supostas ‘formas de fazer’
a dramaturgia funcionar. O trabalho tende a derrapar quando substitui o jogo
livre – nas bases acima descritas – pela eleição de uma forma supostamente ‘adequada’ de levantar a
comédia. Para ficar em um exemplo: o mesmo bom ator (Romualdo Freitas) que já
demonstrara antes grande desenvoltura
para conduzir a plateia ‘na palma da mão’ , a partir de certa passagem começa a
desenhar climas e estados que de repente parecem descolar-se daquele jogo
matreiro, da vontade de comunicação direta, que estavam sendo propostos.
É quando o espetáculo se ensimesma, parece querer jogar apenas consigo mesmo – o
que gera algum distanciamento da plateia,
na sequência retomado quando o caminho antigo é redescoberto. Não parece
ser, fundamentalmente, um problema no desenho da cena pensado na direção de
Lenine Alencar, mas na suspensão do
espírito liberto, autônomo, que a
conduzia até ali, moldando as suas formas. Observar as consequências dessa
descontinuidade no fluxo da montagem
também deve ser uma tarefa do encenador, que está na melhor posição para
avaliar o conjunto.
De todo modo
o espetáculo, apesar da ‘barriga’, no
quadro geral evolui bem e cumpre a
vocação que anuncia: a de tatear os caminhos não apenas
das formas já dadas na tradição do cômico, mas – e viva – as que ainda estão
por serem inventadas, como estas de uma possível “Comédia Dell Acre” que o grupo intuiu bem e que pode ser, quem
sabe, o princípio de uma pesquisa artística com boas chances de se verticalizar
e criar para o grupo o perfil, a identidade mais evidente, o “falar em seu
próprio nome e com seus próprios meios”. Ou seja, a autonomia estética que neste trabalho já se pode intuir.
#
Como se
trata da abertura do Festac seguem abaixo algumas notas e percepções (de um
ponto de vista estrangeiro, o deste crítico)
a respeito das circunstâncias em que o Festival acontece (isto vai fazer
deste texto algo um pouco mais extenso
que os que virão adiante).
Após a
apresentação do espetáculo aconteceu algo inesperado e que, no entanto, foi
muito significativo na demonstração do apreço que se tem
pelo Festival. Na hora do ‘debate’ a energia elétrica caiu e mesmo assim
nem por um momento falou-se em cancelar o encontro. De repente acenderam-se
celulares e os que estavam no entorno iluminaram o breve, mas precioso momento
que se seguiu. Pelas circunstâncias, que são do conhecimento e da vivência de
todos, foi tão bonito quanto o vigor que
acabara de ser demonstrado em cena.
Bravos à federação de teatro, que conseguiu agregar aos esforços
próprios dos trabalhadores/artistas o
dinheiro capaz de colocar o Festival de pé. Torçamos para que no futuro próximo
toda a lida e a energia sejam empregadas
prioritariamente nos projetos de criação; que as desigualdades que são
visíveis também nas políticas públicas sejam aplainadas em um projeto
amplo de política para as artes no
Brasil. Bravos novamente a esses artistas, por terem insistido no Festival
mesmo diante de um desarranjo social do tamanho desse provocado pela cheia. A
natureza é uma força viva e por isso
mesmo é preciso fazer a contracena a
partir daquilo que no teatro também é vida plena. E, por fim, bravos por terem
aberto o Festival com um espetáculo na rua: a melhor resposta possível para o
momento - remeter à origem popular dessa
arte, por onde ela começou e para onde, em momentos como este, ela tende a
voltar para recuperar seu poder, para olhar o mundo dentro e em torno.
No tempo das vitrines e da
vida-mercadoria embalada em papel de
presente, a sentença de Moliére é mais que oportuna: “ninguém dá valor à
virtude nua”. E, no entanto, foi nas ruas, essa virtude nua do teatro, que o Festival escolheu
acertadamente começar. E começou de uma maneira aventurosa, vibrante e
necessária.
VII FESTAC / Mostra Semana do Teatro 2015 é uma realização da Federação de Teatro do Acre - FETAC e tem patrocínio da CAIXA / GOVERNO FEDERAL, pelo programa Caixa Cultural de Apoio a Festivais de Teatro e Dança, com parcerias do Governo do Estado do Acre através da Fundação Elias Mansour – FEM, Fundo Estadual de Cultura - FUNCULTURA, PRECULT e Via Verde Shopping, além do apoio da Pizzaria Guia do Sabor, Marcenaria Sulatina, Jornal Opinião e Prefeitura de Rio Branco pela Fundação Garibaldi Brasil – FGB.
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