Duas bonecas, dois
teatros
Kil Abreu
O teatro
para crianças sempre foi e continua sendo o espaço de discussões espinhosas
sobre o que fazer e sobre como fazer uma
arte dedicada aos pequenos. Desde os que
julgam que no mundo contemporâneo, com a homogeneização da vida através das
redes de comunicação de massa, não faz nenhum sentido insistir em discriminações
etárias muito firmes; até os que julgam que a função primordial da
cena para crianças é educar, há posições tanto teóricas quanto artísticas que
se multiplicam na mesma velocidade com que se multiplicam as possibilidades do experimentar
e do entender essa cena.
Neste início
de Festac vimos as apresentações de dois trabalhos cujos princípios estéticos e
relações com as crianças são francamente opostos: a performance da atriz e
palhaça pernambucana Odília Nunes e a montagem, a partir de Lobato, da acreana
Trupe do Banzeiro. As diferenças de
abordagem tendo como ponto de chegada uma plateia comum não se resume a
questões estéticas. Envolvem certas
visões de mundo que são intuídas e representadas em cada um destes
espetáculos.
A
performance palhacística de Odília Nunes é, como permite o gênero, uma
intervenção relativamente malcriada. A rebeldia se desenha primeiro na
personagem, uma boneca faladeira, cheia de badulaques e intenções, que articula
na plateia o seu antagonista e faz do diálogo com ela o verdadeiro motivo de
existência do espetáculo, praticamente a sua razão de ser. Com uma excelente
preparação de ator , capaz de assimilar à cena (e fazer render) as menores
reações do público, ela mantém o jogo aceso e vibrante, amparada em um
roteiro que não impede e, ao contrário,
oportuniza a abertura de portas para um sem número de passagens improvisadas,
em grande parte com a colaboração da
plateia. Uma cena dinâmica que vale como
uma ida ao parque de diversões, com a vantagem de que no espetáculo ainda
podemos viver, entre umas tantas gargalhadas,
alguns momentos de ternura – o que qualifica em muito o trabalho porque
assim se desenha aquele trânsito entre diferentes emoções característico dos
cômicos maiores.
É um teatro vivo, fresco,
praticamente todo ele centrado nos muitos recursos de uma fluente, empática
comunicação que vem de um repertório maduro – sobretudo na fina percepção para
a oportunidade cômica e para o desenvolvimento e sustentação de situações
criadas a partir do improviso. Não é pouco.
Em Memórias
de Emília, em que temos também como personagem uma boneca faladeira e no
entorno a paisagem fabular e humana criada por Lobato, a concepção é um tanto
diferente. E merece alguns apontamentos.
O mais
evidente é que o grupo acreano demonstra uma preocupação grande em tentar
reproduzir, mais que criar, um imaginário
que, em tese, carregaria consigo
valores já reconhecidos como carimbos ‘de qualidade’, ao menos sob certo
ponto de vista: a própria obra de Lobato, por exemplo. Em que pese todas as discussões
atuais em torno do seu conteúdo – para alguns marcado pelo racismo e por outras
variações ideológicas desabonadoras – trata-se sem dúvida de um ‘clássico’ da
literatura infantil (ainda que a literatura em si tenha sido menos visitada que as versões televisivas).
Lobato é, então, uma garantia de que escolhemos a coisa certa para oferecer às
crianças. O mesmo se pode dizer do cancioneiro executado no espetáculo, cujas versões sonoras
são também em boa parte decalcadas da
trilha televisiva. E, por fim (mas não só) o tratamento de gênero que a
encenação de Marcos Areal abraça. É sem dúvida
um musical, com cenas de canto, coreografias e etc. Este é o desenho
mais geral da montagem.
Não
entraremos na questão dos desempenhos, sobre o que muito se poderia discutir. O
fundamental, salvo engano, antes mesmo das questões de rendimento cênico (por
exemplo, se os cantores cantam bem ou não segundo a proposta, se o plano coreográfico
está em diálogo ou não com a dramaturgia, se os atores estão ‘bem’ ou não em seus
papéis, enfim..). Tudo isso, que faz parte do campo de intenções em que o
espetáculo se coloca, parece lateral diante de questões anteriores, que
enumero aqui na forma de perguntas
(intencionadas, como se verá) que talvez ajudem o grupo a colocar para si algumas
avaliações: o que significa fazer episódios do Sítio do Pica pau Amarelo depois
da literatura e da televisão, diante de todas aquelas formas já exploradas e em
certa medida já esgotadas nessas duas linguagens? Esta pergunta se desdobraria
em outra: o que o teatro pode (ênfase na ideia de poder), como lugar de
invenção e reinvenção do mundo, diante destes vocabulários já gastos? Quais são
as possibilidades de fazer deste poder algo que crie as zonas de uma cena presente, que faça um diálogo ‘de igual’ com Lobato, a partir dos imaginários e das
experiências não de uma infância ‘em geral’, mas de uma infância vivida pelas crianças de hoje?
Sem querer
comparar o incomparável ou contrastar o incontrastável, o trabalho da atriz pernambucana seria ótimo
exemplar para possíveis diálogos (não respostas) a estas inquietações. Não como
modelo porque certamente os modelos, se tomados como imexíveis, são o princípio
de falência da intuição criativa. O modelo existe para exercitar determinadas
musculaturas do fazer artístico até que o artista esteja pronto para
destruí-los. Não deve ser visto, portanto, como
um fim, apenas um princípio. Lugar
de onde se começa a criar de fato. O exemplar, neste caso, não estaria então
em nada que se possa ver materialmente em cena. Estaria nas disposições
de pensamento diante do mundo, que, enfim, é o que fundamenta, o que anima, o
que dá vida e empresta sentido àquilo que está em cena.
VII FESTAC / Mostra Semana do Teatro 2015 é uma realização da Federação de Teatro do Acre - FETAC e tem patrocínio da CAIXA / GOVERNO FEDERAL, pelo programa Caixa Cultural de Apoio a Festivais de Teatro e Dança, com parcerias do Governo do Estado do Acre através da Fundação Elias Mansour – FEM, Fundo Estadual de Cultura - FUNCULTURA, PRECULT e Via Verde Shopping, além do apoio da Pizzaria Guia do Sabor, Marcenaria Sulatina, Jornal Opinião e Prefeitura de Rio Branco pela Fundação Garibaldi Brasil – FGB.
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