quinta-feira, 26 de março de 2015

Crítica – “Decripolou Totepou” (Odília Nunes Teatro e variedades – PE) e “Memórias de Emília (Trupe do Banzeiro – AC)


Duas bonecas, dois teatros
Kil Abreu

                     O teatro para crianças sempre foi e continua sendo o espaço de discussões espinhosas sobre o que fazer e sobre como fazer  uma arte  dedicada aos pequenos. Desde os que julgam que no mundo contemporâneo, com a homogeneização da vida através das redes de comunicação de massa, não faz nenhum sentido insistir em discriminações  etárias muito firmes;  até os que julgam que a função primordial da cena para crianças é educar, há posições tanto teóricas quanto artísticas que se multiplicam na mesma velocidade com que se multiplicam as possibilidades do experimentar  e do entender essa cena.
            Neste início de Festac vimos as apresentações de dois trabalhos cujos princípios estéticos e relações com as crianças são francamente opostos: a performance da atriz e palhaça pernambucana Odília Nunes e a montagem, a partir de Lobato, da acreana Trupe do Banzeiro.  As diferenças de abordagem tendo como ponto de chegada uma plateia comum não se resume a questões estéticas. Envolvem certas  visões de mundo que são intuídas e representadas em cada um destes espetáculos.
             A performance palhacística de Odília Nunes é, como permite o gênero, uma intervenção relativamente malcriada. A rebeldia se desenha primeiro na personagem, uma boneca faladeira, cheia de badulaques e intenções, que articula na plateia o seu antagonista e faz do diálogo com ela o verdadeiro motivo de existência do espetáculo, praticamente a sua razão de ser. Com uma excelente preparação de ator , capaz de assimilar à cena (e fazer render) as menores reações do público, ela mantém o jogo aceso e vibrante, amparada em um roteiro  que não impede e, ao contrário, oportuniza a abertura de portas para um sem número de passagens improvisadas, em grande parte  com a colaboração da plateia. Uma cena  dinâmica que vale como uma ida ao parque de diversões, com a vantagem de que no espetáculo ainda podemos viver, entre umas tantas gargalhadas,   alguns momentos de ternura – o que qualifica em muito o trabalho porque assim se desenha aquele trânsito entre diferentes emoções característico dos cômicos maiores.
É um teatro vivo, fresco, praticamente todo ele centrado nos muitos recursos de uma fluente, empática comunicação que vem de um repertório maduro – sobretudo na fina percepção para a oportunidade cômica e para o desenvolvimento e sustentação de situações criadas a partir do improviso. Não é pouco.    
            Em Memórias de Emília, em que temos também como personagem uma boneca faladeira e no entorno a paisagem fabular e humana criada por Lobato, a concepção é um tanto diferente. E merece alguns apontamentos.
            O mais evidente é que o grupo acreano demonstra uma preocupação grande em tentar reproduzir, mais que criar, um imaginário   que, em tese, carregaria consigo  valores já reconhecidos como carimbos ‘de qualidade’, ao menos sob certo ponto de vista: a própria obra de Lobato, por exemplo. Em que pese todas as discussões atuais em torno do seu conteúdo – para alguns marcado pelo racismo e por outras variações ideológicas desabonadoras – trata-se sem dúvida de um ‘clássico’ da literatura infantil (ainda que a literatura em si tenha sido  menos visitada que as versões televisivas). Lobato é, então, uma garantia de que escolhemos a coisa certa para oferecer às crianças. O mesmo se pode dizer do cancioneiro  executado no espetáculo, cujas versões sonoras são também em  boa parte decalcadas da trilha televisiva. E, por fim (mas não só) o tratamento de gênero que a encenação de Marcos Areal abraça. É sem dúvida  um musical, com cenas de canto, coreografias e etc. Este é o desenho mais geral da montagem.
            Não entraremos na questão dos desempenhos, sobre o que muito se poderia discutir. O fundamental, salvo engano, antes mesmo das questões de rendimento cênico (por exemplo, se os cantores cantam bem ou não segundo a proposta, se o plano coreográfico está em diálogo ou não com a dramaturgia, se os atores estão ‘bem’ ou não em seus papéis, enfim..). Tudo isso, que faz parte do campo de intenções em que o espetáculo se coloca, parece lateral diante de questões anteriores, que enumero  aqui na forma de perguntas (intencionadas, como se verá) que talvez ajudem o grupo a colocar para si algumas avaliações: o que significa fazer episódios do Sítio do Pica pau Amarelo depois da literatura e da televisão, diante de todas aquelas formas já exploradas e em certa medida já esgotadas nessas duas linguagens? Esta pergunta se desdobraria em outra: o que o teatro pode (ênfase na ideia de poder), como lugar de invenção e reinvenção do mundo, diante destes vocabulários já gastos? Quais são as possibilidades de fazer deste poder algo que crie as zonas de uma cena  presente, que faça um diálogo ‘de igual’  com Lobato, a partir dos imaginários e das experiências não de uma infância ‘em geral’, mas de uma  infância vivida pelas crianças de hoje?
            Sem querer comparar o incomparável ou contrastar o incontrastável,  o trabalho da atriz pernambucana seria ótimo exemplar para possíveis diálogos (não respostas) a estas inquietações. Não como modelo porque certamente os modelos, se tomados como imexíveis, são o princípio de falência da  intuição criativa. O  modelo existe para exercitar determinadas musculaturas do fazer artístico até que o artista esteja pronto para destruí-los. Não deve ser visto, portanto, como  um fim, apenas um princípio. Lugar  de onde se começa a criar de fato. O exemplar, neste caso, não  estaria então  em nada que se possa ver materialmente em cena. Estaria nas disposições de pensamento diante do mundo, que, enfim, é o que fundamenta, o que anima, o que dá vida e empresta sentido àquilo que está em cena.  



 VII FESTAC / Mostra Semana do Teatro 2015 é uma realização da Federação de Teatro do Acre - FETAC e tem patrocínio da CAIXA  / GOVERNO FEDERAL, pelo programa Caixa Cultural de Apoio a Festivais de Teatro e Dança, com parcerias do Governo do Estado do Acre através da Fundação Elias Mansour – FEM, Fundo Estadual de Cultura - FUNCULTURA, PRECULT e Via Verde Shopping, além do apoio da Pizzaria Guia do Sabor, Marcenaria Sulatina, Jornal Opinião e Prefeitura de Rio Branco pela Fundação Garibaldi Brasil – FGB.

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