O espírito vivo do mamulengo e o jogo do mamulengueiro
Kil Abreu
O VII
Fetac apresentou em uma mesma sequência
dois espetáculos de mamulengo que além de
deliciosas horas de gargalhadas
renderam exemplos de como a cena popular
pode ser/ é exemplar quando se pensa em formas para a teatralidade viva (o que
supõe que haja um teatro morto, e há mesmo). Enraizado no mundo ordinário para saltar para além dele,
o mamulengo não tem – e não quer ter – outra saída senão essa mesma, a de
explorar através da animação de bonecos o
acidente e o burlesco da vida, através de uma filosofia chã, absolutamente
material, em que os objetos postos à reflexão são reconhecidos imediatamente porque
inspirados nos tipos humanos e nas formas da sociabilidade que conhecemos bem .
Como dizia Hermilo Borba Filho no seu fundamental Fisionomia e espírito do mamulengo, “é a nossa exclusiva forma de espetáculo total, onde o boneco é o
personagem integral e o público um elemento atuante”.
Isso bastaria para dar conta de
uma percepção inicial que tem resposta generosa nestes dois trabalhos apresentados no Fetac. Tanto o Núcleo
do Olho quanto o Mamulengo da Folia
dialogam fundamente – ainda que não da mesma forma, com os mesmos efeitos e com as mesmas estratégias dramatúrgicas –
com estes princípios fundamentais que movem o que parece ser a essência do
mamulengo.
Nas duas montagens sobressai nos
tipos populares a caracterização
tradicional do gênero, demarcada na caricatura, nos traços rápidos e
fundamentais talhados em cada
boneco. Estes por sua vez representam posições de classe social, religiosa (o
negro pobre, o coronel poderoso, o padre, o demônio), alegorizam disposições afetivas (o enamorado,
a enamorada) ou forças da natureza (a cobra grande). Os entrechos, também
anti-realistas por excelência, dialogam
com o repertório da cultura popular: quiproquós, lutas e jornadas que começam
nas situações ordinárias do mundo terreno e avançam no campo do sobrenatural,
onde uma parte da história é desenrolada. Nos dois espetáculos é o amor (e o
sexo) impedido pelas diferenças de raça e posição social o que movimenta as personagens,
narradas através de quadros mais
autônomos no trabalho de Danilo Cavalcante (A Folia no terreiro...) e mais
contínuo no espetáculo do grupo acreano.
Folia
Em A folia no terreiro de seu Mané Pacaru Danilo Cavalcante é capaz de
experimentar, a partir desta chave de cena popular, tudo aquilo que no teatro de sala os artistas perseguem como quem
corre na busca do ouro, do mais precioso do ofício: o domínio dos meios – qual seja, das técnicas; e , mais que isso,
o seu uso pleno, sem sobras, a favor da teatralidade. Seu trabalho alcança aquele
ponto de sofisticação artística em que o virtuose já não precisa exibir o
virtuosismo porque o poder de
comunicação que o espetáculo alcança
parece ser fruto justo desta consciência primeira, dominada em ato, de que os meios não são os fins. De que a
sedução da plateia (o seu inegociável lugar de chegada) decorre da
propriedade que o mamulengueiro tem não
só dos seus materiais como também das várias fontes narrativas do espetáculo – as que já estão no
plano inicial e as que vão sendo agregadas no decorrer da representação : desde as técnicas de animação e manipulação
em si como também a escuta atentíssima do entorno, que alimenta as
incontáveis variações improvisadas.
Delas se faz a liga entre o roteiro
básico com que os bonecos sobem à empanada e o mundo de possibilidades que vai ganhando
espaço na cena aberta com a plateia.
Vade Retro
O
trabalho do grupo acreano não teve a mesma sorte do primeiro na apresentação
que foi transferida da rua para dentro do Mercado velho por causa da
chuva. Além de acontecer em um espaço
ruim de acústica, com muita reverberação, ainda foi levado no gogó, sem
microfones. Para uma narração toda feita
por detrás da empanada, como é comum nesse caso, perdeu-se um tanto do narrado.
Mesmo
assim manteve-se de pé a mesma tarefa do
anterior, que o grupo se pôs com a valentia necessária para as circunstâncias:
chegar ao público sem mais delongas. Diferente do “Mané Pacaru”, que se faz na
base de fragmentos razoavelmente livres, o espetáculo tem uma narrativa
contínua e redonda, o que não impossibilita a autonomia do grupo para os
improvisos, mas lhe dá um eixo mais exigente se o ponto de vista for o da
necessidade de manter a sequência da história que está sendo contada. Como no
anterior, com técnicas de manipulação
através de luva e vara, o espetáculo se articula na mesma linguagem
desobediente, cheia de conotações
sexuais e nas críticas de comportamento em que as formas de relacionamento vão sendo desnudadas ao mesmo tempo em que
deixam revelar o modo como um poder
exterior a elas as organiza e disciplina. O barato está – sempre – na percepção
de que ao enquadramento dos poderosos há sempre uma inteligência urgente e esperta
que, por necessidade, sobrevive porque busca encontrar, na base da galhofa, as saídas
para aquilo que na vida parece sem saída. Nem que para isso seja
necessário lançar mão a artifícios extraordinários.
Nos
dois espetáculos a narrativa não se dá
sem o acompanhamento musical, que não só faz as vezes da sonoplastia como também a de uma das
fontes dramatúrgicas mais importantes da encenação. Em ambas
a sanfona, o bumbo e o triângulo – e os músicos que as animam – são
verdadeiros antagonistas, junto com o público. São chamados a dialogar com os
acontecimentos, respondem aos improvisos
e ajudam a demarcar o andamento das cenas.
O sentido político destes dois
espetáculos , enraizado nas razões da
arte popular tradicional, não está necessariamente (ou não só) nas referências
e nas informações que aqui e ali aparecem no meio da narrativa sobre os lances
atuais da vida brasileira hoje. Antes mesmo disso está no fato de reconhecerem
a nós como sujeitos, coisa sem a qual esta cena não sobrevive, não tem razão de
ser. A política se articula então através desse repertório de soluções
estéticas que começa na feitura do boneco e no desenvolvimento das técnicas de
manipulação, mas que tem como ponto de chegada e motivação essencial esse
encontro com o outro, esse ‘comum’ do
qual o artista se distancia por um momento não para ganhar um lugar mais alto
na hierarquia social mas justo para demonstrar, através do espírito cômico, as
condições que nos separam e, sobretudo, as que nos igualam.
São trabalhos em que os artistas conseguem então aquele tipo
de comunhão notável e difícil de alinhar
entre personagens, histórias contadas, meios de contação e audiência, em um mesmo lance potente que dura enquanto
dura o espetáculo e deixa em nós, sujeitos de um mundo em pedaços, a sensível
ilusão de que pertencemos ou podemos pertencer
àquela imaginada ‘comun-idade’ a que se referia o mestre
Hermilo.
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