sexta-feira, 27 de março de 2015

Crítica – “A Folia no terreiro de seu mané Pacaru” (Mamulengo da Folia/PE) e "A história do homem que vendeu a alma ao diabo e quase perdeu seu amor” (Vade retro – O Núcleo do olho/AC)


O espírito vivo do mamulengo e o jogo do mamulengueiro
Kil Abreu
                                                  
                                                                        
                O VII Fetac apresentou em uma mesma  sequência dois espetáculos de mamulengo que além de  deliciosas  horas de gargalhadas renderam exemplos de como a cena  popular pode ser/ é exemplar quando se pensa em formas para a teatralidade viva (o que supõe que haja um teatro morto, e há mesmo). Enraizado  no mundo ordinário para saltar para além dele, o mamulengo não tem – e não quer ter – outra saída senão essa mesma, a de explorar  através da animação de bonecos o acidente  e o burlesco da vida, através  de uma filosofia chã, absolutamente material,  em que  os objetos postos à reflexão  são reconhecidos imediatamente porque inspirados nos tipos humanos e nas formas da sociabilidade que conhecemos bem . Como dizia Hermilo Borba Filho no seu fundamental Fisionomia e espírito do mamulengo, “é a nossa exclusiva  forma de espetáculo total, onde o boneco é o personagem integral e o público um elemento atuante”.
Isso bastaria para dar conta de uma percepção inicial que tem resposta generosa nestes  dois trabalhos apresentados no Fetac.  Tanto o Núcleo do Olho quanto o Mamulengo da Folia dialogam fundamente – ainda que não da mesma forma, com os mesmos efeitos  e com as mesmas estratégias dramatúrgicas – com estes princípios fundamentais que movem o que parece ser a essência do mamulengo.
Nas duas montagens sobressai nos tipos populares  a caracterização tradicional do gênero, demarcada na caricatura, nos traços rápidos  e  fundamentais  talhados em cada boneco. Estes por sua vez representam posições de classe social, religiosa (o negro pobre, o coronel poderoso, o padre, o demônio),  alegorizam disposições afetivas (o enamorado, a enamorada) ou forças da natureza (a cobra grande). Os entrechos, também anti-realistas por excelência,   dialogam com o repertório da cultura popular: quiproquós, lutas e jornadas que começam nas situações ordinárias do mundo terreno e avançam no campo do sobrenatural, onde uma parte da história é desenrolada. Nos dois espetáculos é o amor (e o sexo) impedido pelas diferenças de raça e posição social o que movimenta as personagens, narradas através de  quadros mais autônomos no trabalho de Danilo Cavalcante (A Folia no terreiro...) e mais contínuo no espetáculo do grupo acreano.
Folia
Em A folia no terreiro de seu Mané Pacaru Danilo Cavalcante é capaz de experimentar, a partir desta chave de cena popular,  tudo aquilo que no teatro de sala os artistas perseguem como quem corre na busca do ouro, do mais precioso do ofício: o domínio dos meios  – qual seja, das técnicas; e , mais que isso, o seu uso pleno, sem sobras, a favor da teatralidade. Seu trabalho alcança aquele ponto de sofisticação artística em que o virtuose já não precisa exibir o virtuosismo  porque o poder de comunicação que  o espetáculo alcança parece ser fruto justo desta consciência primeira, dominada em ato,  de que os meios não são os fins. De que a sedução da plateia  (o seu  inegociável lugar de chegada) decorre da propriedade que o mamulengueiro tem  não só dos seus materiais como também das várias fontes  narrativas do espetáculo – as que já estão no plano inicial e as que vão sendo agregadas no decorrer da representação :  desde as técnicas de animação e manipulação em si como também a escuta atentíssima do entorno, que alimenta as incontáveis  variações improvisadas. Delas se faz   a liga entre o roteiro básico com que os bonecos sobem à empanada  e o  mundo de possibilidades que vai ganhando espaço  na cena aberta com a plateia.
Vade Retro

                O trabalho do grupo acreano não teve a mesma sorte do primeiro na apresentação que foi transferida da rua para dentro do Mercado velho por causa da chuva.  Além de acontecer em um espaço ruim de acústica, com muita reverberação, ainda foi levado no gogó, sem microfones.  Para uma narração toda feita por detrás da empanada, como é comum nesse caso, perdeu-se um tanto do narrado.
                Mesmo assim  manteve-se de pé a mesma tarefa do anterior, que o grupo se pôs com a valentia necessária para as circunstâncias: chegar ao público sem mais delongas. Diferente do “Mané Pacaru”, que se faz na base de fragmentos razoavelmente livres, o espetáculo tem uma narrativa contínua e redonda, o que não impossibilita a autonomia do grupo para os improvisos, mas lhe dá um eixo mais exigente se o ponto de vista for o da necessidade de manter a sequência da história que está sendo contada. Como no anterior,  com técnicas de manipulação através de luva e vara, o espetáculo se articula na mesma linguagem desobediente,  cheia de conotações sexuais  e nas críticas de comportamento  em que as formas de relacionamento  vão sendo desnudadas ao mesmo tempo em que deixam revelar  o modo como um poder exterior a elas as organiza e disciplina. O barato está – sempre – na percepção de que ao enquadramento dos poderosos há sempre uma inteligência urgente e esperta que, por necessidade, sobrevive porque busca  encontrar, na base da galhofa, as  saídas  para aquilo que na vida parece sem saída. Nem que para isso seja necessário lançar mão a artifícios extraordinários.
                Nos dois espetáculos  a narrativa não se dá sem o acompanhamento musical, que não só faz as vezes  da sonoplastia como também a de uma das fontes dramatúrgicas mais importantes da encenação.  Em ambas  a sanfona, o bumbo e o triângulo – e os músicos que as animam – são verdadeiros antagonistas, junto com o público. São chamados a dialogar com os acontecimentos, respondem  aos improvisos e ajudam a demarcar o andamento das cenas.
O sentido político destes dois espetáculos ,  enraizado nas razões da arte popular tradicional, não está necessariamente (ou não só) nas referências e nas informações que aqui e ali aparecem no meio da narrativa sobre os lances atuais da vida brasileira hoje. Antes mesmo disso está no fato de reconhecerem a nós como sujeitos, coisa sem a qual esta cena não sobrevive, não tem razão de ser. A política se articula então através desse repertório de soluções estéticas que começa na feitura do boneco e no desenvolvimento das técnicas de manipulação, mas que tem como ponto de chegada e motivação essencial esse encontro com o outro, esse  ‘comum’ do qual o artista se distancia por um momento não para ganhar um lugar mais alto na hierarquia social mas justo para demonstrar, através do espírito cômico, as condições que nos separam e, sobretudo, as que nos igualam.  
São trabalhos em que  os artistas conseguem então aquele tipo de  comunhão notável e difícil de alinhar entre personagens, histórias contadas, meios de contação e audiência,  em um mesmo lance potente que dura enquanto dura o espetáculo e deixa em nós, sujeitos de um mundo em pedaços, a sensível ilusão de que pertencemos ou podemos pertencer  àquela  imaginada   ‘comun-idade’ a que se referia o mestre Hermilo.

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