segunda-feira, 30 de março de 2015

Crítica – Organismo (Macaco prego da macaca/AC)


Uma cena acreana sobre um mundo fraturado

Kil Abreu

Provavelmente o trabalho mais ‘experimental’ apresentado no Festac até aqui, “Organismo”, do coletivo Macaco prego da macaca traz a marca da iconoclastia formal para desenhar o ponto de vista a respeito de uma vida hiper informada, em que as estratégias da memória tateiam a possibilidade de totalizar o que a realidade parece já ter fragmentado.


Montado como um mosaico de fragmentos que vão do depoimento pessoalà crítica social, o espetáculo se articula no ajuntamento de materiais de origens diversas: lances recuperados da infância, poemas, letras de músicas, verbetes de dicionário ou de vulgarização científica, entre outros. Desta reunião aparentemente indiferenciada é possível perceber, entretanto, ao menos duas recorrências que em certa medida oferecem as modulações de tom e de sentido da narrativa (sim, ela existe, mesmo ‘explodida’ está lá): o gosto por uma fala que explicita certos tabus ligados à expressão da sexualidade ou de reconhecimento do corpo e a lembrança a personagens, lugares e situações que salvo engano são resgatados da memória afetiva da cidade. 


No primeiro eixo o efeito é o frisson, ao vermos colocados em cena relatos inusuais até mesmo no ambiente da vida íntima, menos ainda em um evento público, em um espaço social como o teatro. O grupo como que se inspira no espírito dos poetas quando se colocam em posição maldita (lembrei da poesia erótica de Verlaine e, em certa passagem, especialmente o seu Soneto do olho do cu). Os atuadores vão da descrição de ações íntimas prosaicas até as beiradas da escatologia. Sobre este aspecto há, claro, controvérsia. Discutíamos depois, quando se sugeriu em debate o abrandamento dessas descrições, se a moral própria do espetáculo, expressa em sua linguagem, é coisa essencial ou acidental, ou seja: se o referido abrandamento na velocidade ferina da língua não despotencializaria uma das linhas de força da encenação e com ela os seus sentidos. Em última análise o que discutíamos era a possibilidade de uma estética por fora dos padrões talvez esperados da beleza. Seria preciso junto a isso avaliar então se não seria um prejuízo irrecuperável disciplinar essa, digamos, carga libidinal desenfreada que o espetáculo tem e que certamente é raiz da sua vitalidade juvenil. 

De um modo ou de outro é um prazer notar em Rio Branco, junto a cenas mais tradicionais, esta cena de uma desobediência em ato artístico que parece, pelo relato do grupo, ser mais que uma questão meramente estética. Como sabemos, a arte que se tenta criar dentro dos muros institucionais (é, parcialmente, o caso) tem sempre como tema de trabalho uma jornada heroica a ser vencida. E fazer isso através dos próprios materiais e com os próprios instrumentos da linguagem teatral é a melhor maneira possível de demarcar as formas de sobrevivência. 



A boa notícia é que todas estas inquietações – podemos ver no espetáculo – já não podem caber na ‘peça’ de teatro. O Macaco prego da macaca não nos apresentou uma peça. Apresentou um teatro cuja importância pode ser medida na mesma extensão e forma malcriada da sua dramaturgia e no empenho juvenil, admirável, dos seus atuadores e mestres. A parte mais bonita talvez seja esta: a visão sobre uma vida em pedaços é levantada, paradoxalmente, por um coletivo orgânico, que a tomar pelo espetáculo não se rendeu à melancolia. Muito pelo contrário.


VII FESTAC / Mostra Semana do Teatro 2015 é uma realização da Federação de Teatro do Acre - FETAC e tem patrocínio da CAIXA / GOVERNO FEDERAL, pelo programa Caixa Cultural de Apoio a Festivais de Teatro e Dança, com parcerias do Governo do Estado do Acre através da Fundação Elias Mansour – FEM, Fundo Estadual de Cultura - FUNCULTURA, PRECULT e Via Verde Shopping, além do apoio da Pizzaria Guia do Sabor, Marcenaria Sulatina, Jornal Opinião e Prefeitura de Rio Branco pela Fundação Garibaldi Brasil – FGB.

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